“A parte mais divertida para mim sempre foi o pensar”

Crédito: Megan Carey

 

(Available in english)

 

Marta Moita é investigadora Principal no Champalimaud Research, no Centro Champalimaud, em Lisboa. O seu laboratório está interessado em desvendar como é que os animais usam os sinais transmitidos por indivíduos da mesma espécie para guiar o seu próprio comportamento. Além disso, Marta Moita está interessada em perceber como é que o estado interno de um indivíduo é capaz de modular o seu próprio comportamento.

Quando eras criança e te perguntavam o que querias fazer no futuro, o que respondias?

Queria ser trapezista no circo ou trabalhar com leões. O circo era algo de que gostava realmente! Queria também ser ginasta, a Nadia Comaneci era a minha heroína. E zoóloga, queria trabalhar no Zoo de San Diego. Isto foi provavelmente instigado por documentários sobre a vida animal, dos quais as expedições marinhas de Jacques Costeau foram particularmente importantes. O impacto destas expedições era ainda maior quando o meu tio, um contador de estórias incrível, reunia um grupo de miúdos todas as noites na praia, para mais uma aventura do Costeau. As suas estórias estavam repletas de inovações como o batiscafo, criaturas e paisagens fantásticas que ganhavam vida com a ajuda de adereços, como pequenas pedras que ele encontrava na praia.

Quando é que decidiste que querias ser cientista?

Não sei ao certo…Acho que quando estava no 9º ano fiz aqueles testes de aptidão, e o resultado foi ciência e ar livre. E lembro-me, de na altura, ter ficado bastante desapontada, porque essas respostas já eu sabia. Por isso, acho que desde cedo, soube que queria algo relacionado com ciência, mas não me recordo ao certo quando decidi que queria ser cientista…Nunca houve um momento de “Ah-ah!, Eu quero ser cientista!”. Penso que isso nunca foi claro na minha cabeça.

Do que mais gostas e do que menos gostas em ser cientista?

A parte mais divertida para mim sempre foi o pensar. Gosto imenso quando temos que formular ideias e debater com pessoas. Ler um artigo, ouvir alguém falar, ou falar com alguém, começar a estabelecer ligações, e ter ideias para experiências. Por exemplo, quando tens de escrever um projeto, muitas vezes partes de uma intuição e depois tens que a transformar num projeto. Nessa altura, começas a ler bastantes artigos e a fazer ligações entre as ideias. E de repente, passas a ter uma espécie de plano de trabalho. Gosto muito desta parte. Dá-me imenso gozo este processo, que normalmente exige que interajas com outras pessoas, e eu gosto disso.
Depois, há coisas em particular que me dão gozo quando faço experiências. Uma delas é ouvir a atividade neuronal enquanto o animal se movimenta. Não há sensação igual! Nesses momentos, aquilo que me fascina não é tanto a pergunta que estou a investigar, ou o significado daqueles potenciais de ação, mas sim a possibilidade de ouvir, literalmente, o cérebro. É realmente incrível! E há também algo em atividades minuciosas, como histologia, que me dá bastante prazer. É muito zen para mim.
O que menos gosto…Quando estás a fazer experiências, o que menos gosto é o “bater com a cabeça na parede”. Tens de repetir e repetir uma experiência e muitas vezes não funciona, o que acaba por ser bastante frustrante. Acho que a maior parte das pessoas passa por fases de grande frustração, e é bastante duro…
Enquanto Investigadora Principal…a pressão. Infelizmente, o meio da investigação científica é muito competitivo. É uma corrida constante. E eu não gosto disso. Teres de provar constantemente aos outros aquilo que vales.

Quais as principais questões que o teu laboratório investiga?

As nossas questões dividem-se em duas vias de investigação. Uma delas foca-se em explorar o modo como as interações sociais moldam o comportamento, ou seja, como é que os indivíduos usam o comportamento de outros para guiar o seu próprio comportamento, em particular quando estão perante uma ameaça ou em busca de comida.
Ao mesmo tempo, queremos também perceber como é que o estado interno de um indivíduo modula o seu comportamento. Por exemplo, na presença de uma ameaça, como é que o estado interno (e.g., um estado de medo), contribui para a preparação dos comportamentos defensivos? E como é que uma mudança no estado interno (induzido, por exemplo, por um contexto social) modula estas respostas?

E… quais foram as tuas verdadeiras motivações para estudar estas questões?

Sempre persegui as questões que despertavam a minha curiosidade, mas o meu percurso científico foi sempre marcado por felizes acasos e influenciado pelo meu ambiente social, pelas pessoas que me rodeavam. Por exemplo, quando comecei o meu laboratório estava interessada em estudar aprendizagem ao medo, ou seja, em perceber como é que os animais atribuem um valor negativo a determinados estímulos, como um som, e como é que o cérebro resolve este problema. Na altura, estava a trabalhar num instituto onde era a única neurocientista, e nas interações que tinha com os outros cientistas, o seu principal interesse estava relacionado com o comportamento dos animais, que é algo com que as pessoas se relacionam mais facilmente. Isto levou-me a explorar as capacidades cognitivas dos animais e a partir daí comecei a trabalhar em comportamento social. Mais tarde, numa conferência em que dei uma palestra sobre a aprendizagem ao medo em ratos, fui abordada por um investigador holandês, Christian Keysers, que estava a estudar comportamento social e empatia em humanos, e que ficou interessado em expandir a sua investigação para ratos. Começámos então a colaborar e, finalmente, os dois projetos juntaram-se.

Conta-nos uma história do teu laboratório.

Vou-te contar a história da transmissão social de medo.
Imagina uma situação em que um animal deteta uma ameaça: nós queremos perceber como é que os comportamentos de defesa demonstrados por este animal influenciam os comportamentos de defesa de um outro animal que não tenha detetado a ameaça diretamente. Será que este segundo animal consegue inferir que existe uma ameaça no ambiente a partir do comportamento do primeiro?
Este projeto começou como uma colaboração com o laboratório do Christian Keysers. Basicamente, a ideia era a seguinte: treinamos um rato para ganhar medo a um som em particular, tocamos este som outra vez a este rato, e depois verificamos como é que um rato observador responde à demonstração dos comportamentos defensivos do primeiro animal. Houve uma série de observações interessantes que surgiram desta experiência: o rato observador, em resposta ao comportamento de defesa do outro rato, demonstra também um comportamento de defesa e, curiosamente, isto só acontece se este rato já tiver passado por uma experiência aversiva antes. Portanto, qual é exactamente a informação que o rato observador está a detetar no outro animal? O que é que acontece quando, após uma experiência aversiva, te permite responder ao comportamento defensivo de outrém?

E o que fizeram para investigar estas questões?

Para abordar estas questões, utilizámos um paradigma comportamental simples. Treinamos um rato para ganhar medo a um som, tocamos este mesmo som a este rato na presença do seu parceiro (o rato com quem partilha a casa) – o rato observador – e finalmente olhamos para o comportamento deste segundo animal. Depois, investigamos que informação é que o rato observador poderá estar a detetar do outro rato e que poderá estar a mediar a transmissão de medo.
Por exemplo, será que é informação visual? Será que o rato observador poderá estar a ver o outro? Vamos então fazer a experiência às escuras. Ah!, mas verificámos que mesmo sem os ratos se conseguirem ver, o rato observador demonstra uma resposta defensiva. Não poderá ser, por isso, a informação visual.
Depois de testarmos os vários tipos de estímulos (visual, auditivo, táctil), finalmente descobrimos algo que achamos ser verdadeiramente interessante. O rato observador está a ouvir o som da atividade vinda do outro animal, uma vez que o comportamento de defesa demonstrado foi a ausência de movimento.
Na realidade, quando há uma ameaça, os animais podem ter diferentes reações, nomeadamente fuga, luta ou imobilidade. Quando não há escapatória possível, a maior parte dos vertebrados tende a ficar imóvel, escolhendo um canto da caixa, onde permanece parado. A ideia subjacente é que esta resposta permite-lhes passar despercebidos – se não se mexerem, não chamam a atenção para si. Uma vez que os nossos ratos não conseguem escapar da caixa, é precisamente esse o comportamento que adotam quando o som aversivo é tocado – param e ficam imóveis. Em condições normais, na ausência do som aversivo, o rato movimenta-se pela caixa, faz barulho, existe som de atividade. Porém, aquando da ameaça, ele pára e fica imóvel, criando uma transição de som para silêncio. Por isso, para testar esta ideia, fizemos a seguinte experiência: gravámos o som de movimento que precede o tom aversivo, e depois tocámos este som durante o intervalo de tempo em que há imobilidade. Curiosamente, verificámos que o rato observador não ficava imóvel nestas condições, demonstrando que estava realmente a ouvir esta transição de som para silêncio.

Para ti, qual é a mensagem principal a reter desta história?

Silêncio equivale a más notícias, significa que algo de estranho deverá estar a acontecer porque o outro animal, de repente, deixou de fazer barulho.
Uma das coisas que achamos realmente interessante é que este sistema de ‘tu páras, eu páro, e por causa disso mais alguém vai parar’ é uma forma imediata de propagação de informação acerca da presença de uma ameaça. Por exemplo, se emites um som de alarme, estás a tentar proteger os outros mas, ao mesmo tempo, também estás a chamar atenção para ti. Por outro lado, a imobilidade é um comportamento que tu já utilizas para te proteger, mas, ao mesmo tempo, serve também como sinal de alarme para os outros.
Uma vez que a imobilidade tem sido observada em todos os vertebrados, é um sinal que rapidamente se propaga no meio, porque qualquer espécie consegue detetar essas transições entre som e silêncio. Não precisa de ser um rato a detetar o som de um rato, pode ser um ratinho ou um cão. Se eles de repente ficam em silêncio, isso leva a que eu fique em silêncio também.
Portanto, as nossas experiências levam-nos a acreditar que o silêncio constitui um sinal público que se consegue propagar rapidamente pelos animais dentro de um ecossistema.

Achas que vais querer ser cientista para sempre?

Acho que sempre pensei isso, mas ao mesmo tempo não completamente. Sempre pensei, e continuo a pensar, em carreiras alternativas. Por exemplo, não há muito tempo atrás, considerei estudar medicina e juntar-me aos médicos sem fronteiras. Portanto, sim, penso noutras opções, mas sinto que quero continuar a fazer investigação científica, gosto de ser cientista.

Olhando em retrospectiva para a tua carreira, que aspetos da tua personalidade consideras terem sido importantes no teu percurso enquanto cientista?

Persistência, criatividade e pensamento claro.

Enquanto cientista, que mensagem gostarias de transmitir a quem te está a ler?

Continuem a questionar.


 

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Maria Inês Vicente trabalha no Gabinete de Comunicação de Ciência, no Champalimaud Neuroscience Programme

 


 

Edited by: Catarina Ramos, Ana Gerschenfeld  , Ivo Marcelo,  Clara Howcroft Ferreira
Photo Credit: Megan Carey
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