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No século XIX, os museus eram um dos poucos lugares onde o trabalho daqueles que estudavam animais, plantas e minerais era pago e reconhecido. José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), um naturalista português do século XIX, fundou o primeiro museu de história natural de Lisboa para criar o espaço de que precisava para os seus estudos. O museu garantiu uma carreira científica a Bocage, permitindo-o alcançar um reconhecimento internacional.
Numa das ruas principais do bairro lisboeta do Príncipe Real, há um edifício que nos salta logo à vista. Com pisos anormalmente altos e a entrada principal ladeada por grossas colunas, destoa das casas em volta. Ao olharmos para a sua entrada, não podemos deixar de nos sentir pequenos e frágeis. O edifício é hoje a sede do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, mas nem sempre foi assim. Até há poucas décadas, metade dele albergava a escola que deu o nome à rua que lhe dá acesso: a Escola Politécnica de Lisboa. A história de como o museu veio a ocupar este espaço é a história de como um dos professores da Politécnica, José Vicente Barbosa du Bocage (primo em segundo grau do famoso poeta português), conseguiu fundá-lo quase a partir do zero. Na verdade, o museu foi fundamental para que Bocage tivesse uma carreira científica de sucesso a nível internacional.
Uma paixão pela Zoologia
Em 1851, quando Bocage passou a reger a cadeira de zoologia da Politécnica com apenas 27 anos, esta escola de ciências estava numa situação precária. Oito anos antes, um incêndio tinha destruído quase todo o seu edifício. Graças à acção de dezenas de pessoas, a maior parte dos bens foi poupada às chamas, mas a sobrevivência da escola foi posta em causa. As aulas tiveram de ser transferidas para outros espaços que não tinham salas suficientemente grandes para receber as turmas, ou para armazenar colecções e instrumentos científicos.
Bocage sonhava fazer uma carreira de zoólogo e passar a vida a estudar animais, mas isso não era possível sem um espaço para trabalhar. Precisava ainda de um apoio institucional que a Politécnica não lhe podia dar, já que não tinha sido criada para a investigação. A escola era dominada por militares e a cadeira de zoologia tinha pouco prestígio, servindo apenas para a formação inicial dos estudantes de medicina de Lisboa.

Bocage sabia que tinha de apresentar uma boa razão para que financiassem as suas investigações. Teve então uma ideia: por que não criar um museu de história natural? As colecções destes museus tinham de estar organizadas segundo critérios científicos, pelo que era imprescindível contratar especialistas. Talvez fosse uma boa estratégia.
Por outro lado, havia também uma alternativa: a Academia Real das Ciências de Lisboa tinha um museu de história natural. Na verdade, não era um verdadeiro museu, pois as colecções estavam mal organizadas e degradavam-se a olhos vistos. No entanto, Bocage reparou que podia virar a situação a seu favor, argumentando que o museu devia ser transferido para a Politécnica, que tinha mais meios. Como ele e outros colegas eram membros da Academia, resolveram apresentar uma proposta à direcção. A proposta era controversa – outros membros receavam a perda de prestígio da Academia, incluindo o seu vice-presidente, o escritor e historiador Alexandre Herculano – e não passou.
Bocage, contudo, não ia baixar os braços. À medida que o edifício da Politécnica era reconstruído, finalizavam-se salas espaçosas o suficiente para servir como galerias de um futuro museu. Os professores da Politécnica resolveram então tomar uma atitude mais drástica. Como alguns deles (ao contrário de Bocage) eram deputados, fizeram pressão no Parlamento para que o governo forçasse a mudança. Desta vez, foram bem-sucedidos e a transferência foi finalmente decretada em 1858.
Um museu para uma carreira científica
Assim que o museu passou para a alçada da Politécnica, Bocage meteu mãos à obra. A tarefa não era fácil, visto que Portugal não tinha uma comunidade de zoólogos experiente que o pudesse apoiar. Assim, resolveu aconselhar-se lá fora. Percorrendo a Europa, visitou os melhores museus de história natural da altura, em Paris, Londres e Leiden, e aprendeu as melhores práticas. Também aproveitou a ocasião para se dar a conhecer à comunidade internacional de zoólogos e obter colecções para o museu de Lisboa.
Em pouco tempo, Bocage conseguiu centenas de espécimes novos, mas depressa percebeu que sem um orçamento maior o museu não conseguiria preservá-los. Assim, apresentou uma proposta ao governo da altura para transformar a instituição num novo Museu Nacional de Lisboa. Argumentando que a fauna nacional era praticamente desconhecida, Bocage pediu uma maior dotação para poder estudá-la e expô-la no museu, onde funcionaria como um símbolo nacional. O governo aceitou a ideia e, em 1863, o novo Museu Nacional estava instalado numa parte do novo edifício da Politécnica, o mesmo que ainda hoje o alberga.
Agora, faltava apenas uma coisa para Bocage construir uma carreira científica: ter muitos espécimes para estudar. Como tinha pouco tempo livre entre as suas aulas e a administração do museu, tentou encontrar colaboradores que lhe enviassem animais. Depois de algumas viagens pelo país, encontrou pessoas interessadas, a quem distribuiu um manual de técnicas de recolha da sua autoria. Aproveitando o facto de que, naquela altura, Portugal tinha colónias em lugares remotos do mundo, Bocage fez também contactos para obter animais dessas regiões.
Foi assim que chegou até José de Anchieta, um português que vivia então em Angola. Graças à sua dedicação, Anchieta tornou-se no maior colaborador do Museu, enviando milhares de espécimes para Lisboa, que foram incorporados nas suas colecções. Graças em grande parte a Anchieta, Bocage tornou-se um especialista em aves e répteis africanos e descobriu dezenas de espécies novas. Publicando os seus artigos nas melhores revistas científicas da época, e escrevendo-os em francês, a língua comum às elites da época, Bocage pôde ser entendido além-fronteiras, criando uma reputação internacional e aumentando o prestígio do Museu.
Após a morte de Bocage, em 1907, o Museu Nacional continuou activo, permitindo a formação de novas gerações de zoólogos. Contudo, entrou em declínio em poucas décadas. Em 1978, um grande incêndio destruiu a maior parte das colecções que tinham sido estudadas por Bocage e outros. Depois de muitos esforços, o museu foi novamente erguido das cinzas no mesmo edifício.
Se não nos sentirmos intimidados pela sua entrada imponente, podemos atravessá-la e deambular pelos espaços onde Bocage fez a sua carreira. Conhecer a sua história permite-nos ver este museu com outros olhos. Na verdade, se hoje podemos visitar um museu de história natural em Lisboa, é sobretudo a Bocage que temos de agradecer.
Daniel Gamito-Marques is a postdoctoral researcher in History of Science and a published writer based in Lisbon.
Edited by: Ana Gerschenfeld and Liad Hollender(Science Communication office). Image credit: Top: “Noviciado dos Jesuítas no sítio da Cotovia, Colégio dos Nobres, Escola Politécnica.” 1863. Archivo Pittoresco31:244-6. Center: Baltasar Osório, J. V. Barbosa du Bocage. Lisboa: Imprensa Libânio da Silva, 1915.
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