Como o cérebro faz escolhas: o sinuoso caminho da decisão à acção

Crédito da imagem: Diogo Matias
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Embora as decisões que tomamos afectem profundamente a nossa vida quotidiana, a forma como deliberamos e decidimos é um processo complexo que ainda só percebemos parcialmente.

Imagine que está a tentar acender um isqueiro. Se não vir a chama, naturalmente tentará uma segunda vez. Se, após a segunda tentativa, ele ainda não acender, repetirá a mesma acção as vezes que for preciso para que isso aconteça. Se acabar por conseguir ficará a saber que o seu isqueiro funciona. Mas e se isso não acontecer? Quanto tempo é que irá continuar a tentar até decidir desistir?

A nossa vida quotidiana está cheia de dilemas como este, de decisões cujo desfecho é incerto. Temos constantemente de escolher entre várias opções, não só para tomar as decisões mais triviais (“será que devo continuar a tentar acender este isqueiro?”), mas também as escolhas que podem mudar a nossa vida (“devo acabar com esta relação?”). Em cada situação, podemos continuar a fazer o que já estamos habituados a fazer ou arriscar opções inexploradas que podem vir a ser muito mais enriquecedoras.

Há pessoas que têm uma inclinação natural para arriscar mais, enquanto outras preferem optar por aquilo que conhecem melhor. No entanto, a curiosidade e a vontade de explorar novas alternativas é fundamental para os seres humanos e os animais conseguirem descobrir a melhor forma de obter recursos tais como água, comida ou dinheiro. Enquanto olho para a Torre de Belém – um monumento às grandes descobertas marítimas de Portugal – da janela do meu gabinete, muitas vezes me pergunto o que leva as pessoas a explorar o desconhecido e o que se passa dentro do seu cérebro ao pesarem os prós e os contras de tentar uma coisa nova. Para responder a estas perguntas, em conjunto com Zachary Mainen e a sua equipa de neurocientistas do Centro Champalimaud, em Lisboa, Portugal, investigamos como o cérebro lida com a incerteza ao tomar decisões.

Da decisão à acção

Embora as decisões que tomamos afectem profundamente a nossa vida quotidiana, a forma como deliberamos e decidimos é um processo complexo que ainda só percebemos parcialmente. Este tema tem sido amplamente estudado do ponto de vista etológico e teórico (Cisek e Kalaska , 2010) e os neurocientistas estão a começar a descobrir diversas áreas do cérebro que contribuem para resolver dilemas e agir em consequência (Gold e Shadlen , 2007). No entanto, ainda estamos longe de sermos capazes de desvendar o sinuoso caminho que liga a decisão à acção, porque mesmo as decisões mais triviais envolvem muitas áreas do cérebro e interações cooperativas entre muitas células (Montague, 2008).

Retomemos o exemplo do isqueiro. Para decidir se deve continuar a tentar acendê-lo, deve primeiro recolher informações: produz ou não chama? Isso vai activar as regiões do seu cérebro responsáveis ​​pelo processamento de estímulos sensoriais como a visão ou o toque. A seguir, pode ficar satisfeito(a) se vir uma chama ou surpreendido(a) se não a vir. Isso ocorre porque a informação sensorial é comunicada ao seu sistema de recompensa. Por sua vez, o circuito de recompensa, ao libertar uma molécula chamada dopamina, ajudará a motivar a escolha da sua próxima acção (Dayan e Niv, 2008).

Mas então, o que deve fazer a seguir? Bem, se vê a chama, só pode continuar a pressionar o botão do isqueiro para o manter aceso. Mas na ausência de chama, pode começar a perguntar-se se o movimento do seu dedo foi decisivo o suficiente ou se o isqueiro ficou sem combustível. As áreas frontais do cérebro, que se pensa serem responsáveis pelo controlo de capacidades cognitivas tais como o discernimento e a resolução de problemas, podem ajudar a tomar em conta essa incerteza. Se acredita que o isqueiro ainda contém gás, irá tentar novamente. Mais uma vez, será o seu córtex frontal a controlar a selecção de uma acção voluntária como esta (Miller, 2000).

No final de contas, precisa de decidir quanto tempo está disposto(a) a perder com o isqueiro. Isso vai provavelmente depender do facto de ter ou não outro isqueiro à mão. Pensa-se que a nossa teimosia é regulada pela serotonina, um neuromodulador que tem sido associado à paciência (Fonseca et al., 2015) e à persistência (Lottem et al., 2018 ), mesmo quando a recompensa é incerta.

Reconstruir o quebra-cabeças neural

A nossa equipa desenvolveu uma tarefa simples que recria a experiência do isqueiro. Os ratinhos procuram água naturalmente mas aqui, as gotas de água são fornecidas só de vez em quando e, às vezes, a água esgota-se de forma imprevisível. Isto é semelhante ao isqueiro caprichoso que só se acende de vez em quando até a reserva de gás se esgotar.

Na nossa experiência, monitorizamos cuidadosamente o comportamento dos ratinhos durante esta tarefa para perceber o quão são persistentes na procura de água e quando é que desistem e vão explorar outro sítio. Utilizando modelos computacionais, conseguimos explicar os principais aspectos deste processo de tomada de decisão.

Segundo Pietro Vertechi , o meu colega, que desenvolveu o modelo,
“ao traduzir um processo de decisão difícil (por exemplo, ‘depois de quantos falhanços devo desistir e mudar de estratégia?’) num cenário naturalista (procura de comida ou de água), podemos estudar a cognição em paralelo nos ratinhos e nos seres humanos. Tal como no cenário naturalista equivalente, o animal recebe muitos estímulos diferentes (que vão da cor da caixa ao cheiro do experimentador e ao sabor da água), a maioria dos quais é irrelevante para resolver a tarefa. A modelação matemática diz-nos quais são as variáveis ​​importantes a que o animal deve estar atento (tal como o número de tentativas falhadas consecutivas). Podemos então determinar quais são as regiões do cérebro que codificam essa informação e como o fazem.”

Assim, para reconstruir peça por peça o quebra-cabeças neural da decisão, procuramos esses mecanismos interativos no cérebro do ratinho. Para analisar a actividade de diferentes áreas do sistema nervoso e descobrir o seu papel na tomada de decisão, recorremos a tecnologia de ponta. Por exemplo, uma técnica recentemente desenvolvida, chamada fotometria por fibra óptica, permite-nos detectar sinais muito pequenos no sistema de recompensa (tais como a liberação de dopamina) enquanto os ratos estão a ser recompensados com água.

Da mesma forma, para ouvir a conversa entre os neurónios em múltiplas áreas frontais, usamos uma nova tecnologia que regista a actividade eléctrica de centenas de neurónios em simultâneo enquanto os animais executam a tarefa. Como esta abordagem tem uma resolução espaço-temporal muito fina, tem o potencial de nos ajudar a seguir o rasto à informação dentro do cérebro enquanto a decisão é formada. Por último, utilizamos interruptores ópticos geneticamente codificados – proteínas sensíveis à luz chamadas opsinas – ​​para controlar remotamente a actividade neural graças a impulsos luminosos. Esta poderosa ferramenta permite-nos controlar directamente grupos seleccionados de células, como por exemplo os neurónios que libertam serotonina, para avaliar os seus efeitos no comportamento. E isto poderá permitir-nos explicar por que alguns animais hesitam enquanto outros optam logo pela acção.

Para além do laboratório

Uma visão mais pormenorizada dos mecanismos neurais que governam as nossas escolhas poderão revelar o que faz com que uma pessoa persista em fazer algo independentemente do risco. Esta propensão pode conduzir a disfunções cognitivas ligadas à adicção e a outros transtornos compulsivos. Por isso, o facto de perceber os processos neurais que controlam as adaptações comportamentais poderá ter enormes implicações para a sociedade.

Por outro lado, a falta de persistência perante a adversidade é uma das principais características dos transtornos depressivos. Curiosamente, embora a serotonina seja o principal alvo dos medicamentos antidepressivos, a sua função exacta permanece enigmática. Ao testar o papel desta molécula nos mecanismos de modulação das decisões e das acções voluntárias, esperamos descobrir um novo papel essencial da serotonina que poderia potencialmente conduzir a estratégias terapêuticas inovadoras.

Embora o nosso trabalho esteja longe de fornecer um quadro completo, está a abrir o caminho, uma pedra de cada vez, para desvendar um dos maiores mistérios da neurociência. As respostas científicas que estamos a obter sobre as acções e as decisões voluntárias também poderão contribuir para debates filosóficos como a questão do “livre arbítrio” (Rigato et al, 2014): Quem é que toma decisões? O nosso cérebro?


 

Fanny Cazettes is a Postdoctoral fellow at the Champalimaud Foundation and AXA Research Fund

 


 

This article was originally published inThe Conversation under Creative Commons.  Read the original article. Translated by: Ana Gerschenfeld(Science Communication office) Edited by: Catarina Ramos(Science Communication office) Image credit: Diogo Matias (CCU)

 


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