Poderá uma única região do cérebro ser o “lugar” da consciência?

Photo credit: Greg Dunn, Brian Edwards and Will Drinker
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Será a consciência* gerada pela activação de diversas áreas do cérebro, ou a partir de apenas uma região específica? Alguns cientistas acreditam na existência de um “lugar”da consciência.

Não leia este artigo – não sem antes parar durante um momento. Pegue num livro, num jornal, numa revista. Abra-o ao acaso. Folheie-o. Agora, tente concentrar-se em cada uma das sensações que chega ao seu cérebro: visual (através dos olhos) – cores, formas, letras, números; auditiva (através dos ouvidos) – o som do virar das páginas; olfactiva (através do nariz) – o cheiro característico do papel.

De algum modo, o seu cérebro consegue combinar toda esta informação, juntamente com memórias, emoções e pensamentos, criando uma experiência consciente unificada. Mas como é que isto está a acontecer? Este “grande problema” da consciência, como é muitas vezes apelidado, tem ocupado as mentes de neurocientistas ao longo do século passado, e deverá continuar a fazê-lo no futuro mais próximo.

Até mesmo o próprio conceito de “consciência” está longe de estar definido com clareza. A maior parte dos estudiosos considera que a consciência é formada por duas componentes: o estado de vigília e o estado de consciência propriamente dita. O estado de vigília é relativamente fácil de definir e testar experimentalmente, através de EEG (electroencefalografia, uma técnica utilizada para medir sinais eléctricos no cérebro), uma vez que o padrão de actividade registado por EEG varia consoante os sujeitos estão acordados ou a dormir.

O estado de consciência propriamente dita, em contrapartida, é simultaneamente difícil de definir e de avaliar – o que é que significa concretamente estar consciente do que se passa à nossa volta? Existirão diferentes níveis ou estados de consciência? E será que, para além dos questionários preenchidos pelos participantes do estudo, o método a que geralmente se recorre, existem métodos mais objectivos e rigorosos para os medir?

Mas a questão mais crucial e interessante por resolver é a seguinte: será a consciência gerada pela activação simultânea de diversas áreas do cérebro, ou bastará a activação de apenas uma região específica?

Em 2005, o famoso cientista britânico Francis Crick, um dos responsáveis pela descoberta da estrutura molecular do ADN (e que, nas últimas décadas da sua vida, desenvolveu um profundo interesse pelas neurociências), e Christof Koch, que, na altura, era professor no California Institute of Technology, sugeriram a existência de um “lugar da consciência”. Segundo eles, a consciência seria gerada numa área específica do cérebro: o claustro.

O que é exactamente o claustro, e será possível que este seja a única área do cérebro responsável pela criação da consciência? O claustro consiste numa fina camada de células neuronais localizada numa das áreas mais profundas do cérebro. Possuindo ligações recíprocas com a maior parte do cérebro (incluindo os córtices visual, auditivo e somato-sensorial), o claustro encontra-se numa posição privilegiada para integrar toda a informação sensorial, o que constitui um argumento relativamente forte para a ideia de que talvez seja responsável por gerar a experiência consciente.

No entanto, este tipo de argumentação é essencialmente correlacional, e portanto insuficiente para demonstrar um papel causal do claustro na formação da consciência. Afinal de contas, o facto de a porta de um elevador se abrir quase sempre que uma criança grita “Abre-te!” não faz com que estas palavras estejam na origem da abertura da porta – correlação não implica causalidade.

Em neurociências, a relação de causa e efeito entre uma determinada área do cérebro e a correspondente função é muitas vezes investigada através da activação ou lesão selectiva da região do cérebro em questão, seguida de uma avaliação do impacto que esta teve na função a investigar. Apesar de isto ser, obviamente, extremamente difícil de conseguir em seres humanos, uma vez que a ideia de se oferecer voluntariamente para ser sujeito a lesões cerebrais é pouco apelativa para a maior parte das pessoas, existem alguns casos isolados que podemos examinar.

De facto, existem vários casos que sugerem que lesões no claustro podem perturbar a consciência; por exemplo, em 2011, um homem de 21 anos diagnosticado com lesões bilaterais no claustro (resultantes de uma infecção viral) sofreu alucinações visuais e auditivas, que desapareceram assim que recuperou da lesão. Este caso sugere a existência de uma relação entre lesões no claustro e uma perturbação da vigília, uma das componentes da consciência, o que indica que o claustro pode ser necessário para uma consciência normal.

A experiência complementar que pode ser efectuada nesta busca pela causalidade envolve a estimulação do cérebro. Estudos desta natureza são, uma vez mais, raros (será que o leitor deixaria que lhe colocassem alguns eléctrodos no cérebro e o estimulassem electricamente?), mas existem alguns casos isolados de estudos destes. Um deles envolveu a estimulação eléctrica do claustro numa mulher de 54 anos, que resultou numa inibição instantânea de consciência em cada um dos dez testes, verificando-se uma recuperação imediata da mesma assim que a estimulação foi interrompida.

Assim, vários factores parecem apontar para um papel fundamental do claustro na criação da consciência, desde as suas ligações recíprocas ao resto do cérebro aos estudos de lesão e estimulação efectuados. Mas serão suficientes para demonstrar que o claustro é a única região responsável pela geração de consciência, ou seja, o “lugar da consciência”?

Na verdade, os resultados de alguns dos estudos efectuados são algo ambíguos. É verdade que os estudos de lesão e estimulação efectuados sugerem uma relação de causalidade entre o claustro e a consciência, mas nenhum desses estudos foi particularmente rigoroso. Afinal, o claustro é uma região tão pequena que é quase impossível garantir que a lesão bilateral no homem de 21 anos e a estimulação na mulher de 54 anos afectaram exclusivamente esta área, uma vez que a maior parte dos métodos actualmente disponíveis para a  visualização da actividade cerebral é incapaz de combinar uma resolução temporal e uma resolução espacial suficientes para o detectar. Assim, é possível que a disrupção da consciência tenha sido causada por alterações na actividade de regiões vizinhas. Ou seja, nenhuma ligação causal exclusiva foi demonstrada entre o claustro e a consciência.

Em suma, embora seja possível que o claustro desempenhe algum papel na formação de consciência, nenhum estudo foi até agora capaz de demonstrar de modo conclusivo que o claustro é o “lugar” onde este fenómeno se desenrola. Assim, dizer que “o claustro é o lugar da consciência” é uma resposta demasiado simplista a uma pergunta demasiado complexa.

De facto, até Koch, que inicialmente trabalhou com Crick na ideia do claustro como “lugar da consciência”, acabou por reconsiderar esta sua posição inicial. De acordo com Koch, “[pegar] numa parte do cérebro e [tentar] espremer o sumo da consciência a partir [dela]” é quase impossível – por outras palavras, é provável que a consciência seja um fenómeno demasiado complexo para ser gerado por uma única área do cérebro. É muito provável que outras regiões (tal como o tálamo, que também integra informação sensorial) possam estar envolvidas em ou ser responsáveis por a geração de consciência. Aliás, até é possível que a consciência seja gerada pela activação sincronizada de diversas áreas do cérebro.

Esta é a ideia por trás de uma outra teoria da consciência, a chamada teoria do workspace global, proposta em 1988 por Bernard Baars (actualmente no Instituto de Neurociências, na Califórnia) como uma teoria de arquitectura cognitiva humana, e mais tarde aplicada à consciência. Esta teoria sugere que a experiência consciente resulta da actividade neuronal sincronizada em zonas cerebrais distintas, tendo como elementos-chave os córtices associativos fronto-parietais.

Uma abordagem alternativa poderia ser algo como a teoria da informação integrada, desenvolvida pelo neurocientista e psiquiatra Giulio Tononi, da Universidade de Wisconsin, e colegas, que começa por se focar na consciência em si e tenta fazer o percurso inverso para compreender os processos físicos que dão origem a este fenómeno. Apesar de difícil de pôr em prática e testar experimentalmente, esta pode ser uma necessária mudança de perspectiva e forma de pensar, que poderá vir a trazer alguns avanços neste campo no futuro.

Uma coisa parece, no entanto, certa: a consciência continuará a fascinar cientistas ainda durante muito tempo.

* “Consciência”, neste artigo, refere-se à nossa experiência consciente enquanto seres humanos, e não a uma consciência moral.

Nota: A autora não escreve segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

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11. https://www.livescience.com/47096-theories-seek-to-explain-consciousness.html

 


 

Elisa Clemente is a PhD student at University College London

 


 

Edited by: Ana Gerschenfeld(Science Communication office). Photo credit: Greg Dunn, Brian Edwards and Will Drinker

 


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