Debate de longa data: somos mesmo menos violentos do que os nossos antepassados?

(Image: Dr. Meierhofer)
(Available in English)

 

Um conhecido psicólogo norte-americano defende que a modernização das sociedades ocidentais tem feito diminuir as taxas de vítimas mortais nas guerras, o que indicaria que a violência humana tem vindo a declinar. Dois novos estudos discordam desta teoria.

Dois artigos científicos recentemente publicados argumentam que há um raciocínio errado por detrás da ideia – proposta há uns anos pelo conhecido psicólogo norte-americano Steven Pinker – segundo a qual os humanos têm vindo a tornar-se menos violentos devido à modernidade e ao progresso social.

A questão de saber se somos mais ou menos violentos do que os nossos antepassados veio para a ribalta em 2011, quando Pinker, da Universidade Harvard, publicou um livro que se tornou um best-seller, intitulado Os Anjos Bons da Nossa Natureza: Por que tem declinado a violência (editado em Portugal pela Relógio d’Água). Nele, teoriza que, ao longo da História, tem havido um processo civilizador, resultante da modernização do governo e do Estado, que faz com que sejamos hoje menos violentos do que nunca.

Pinker baseou a sua provocadora conclusão em registos históricos de vítimas de guerra – e, mais especificamente, na constatação de que a proporção da população a sucumbir a conflitos violentos declinou claramente ao longo do tempo. Segundo esta métrica, mesmo o século XX, tirando alguns “solavancos” tais como duas Guerras Mundiais e um Holocausto, foi muito menos violento do que épocas mais antigas, diz Pinker.

O seu livro tem sido muito aclamado, mas também duramente criticado. Em particular, o conhecido especialista e estatístico americano-libanês Nassim Taleb declarou que as estatísticas utilizadas por Pinker são “ingénuas”.

No primeiro dos dois artigos mais recentes, publicado em Outubro na revista Current Anthropology, os antropólogos Dean Falk (Universidade Estadual da Florida) e Charles Hildebolt (Universidade Washington) relembram a linha de pensamento de Pinker. “O psicólogo Steven Pinker cita taxas médias de mortes de guerra (batalhas) sofridas anualmente por cada cem mil indivíduos como prova para concluir que as pessoas que vivem em Estados [modernos] são menos violentas do que aquelas que vivem ou viveram nas ‘sociedades de caçadores-recolectores e hortícolas nas quais a nossa espécie passou a maior parte da sua história evolutiva’”, escrevem.

Estes autores argumentam que, na realidade, a utilização por Pinker de baixas de guerra per capita para sustentar a sua hipótese de declínio da violência – números esses que não dependem do tamanho real das populações – mascaram o facto de ser precisamente o tamanho de uma população que afecta as taxas de violência de uma comunidade e não o seu tipo particular de organização social. Por outras palavras, não é possível ignorar que o tamanho da população exerce um “efeito de escala” sobre as taxas de baixas de guerra.

Para perceber porquê, considere-se o seguinte: as comunidades humanas antigas eram tipicamente compostas por umas centenas de pessoas (talvez uns milhares), enquanto as nações modernas incluem milhões (e até milhares de milhões) de cidadãos. Portanto, parece claro que as primeiras seriam mais profundamente impactadas por qualquer conflito que matasse um punhado dos seus membros do que as segundas jamais o serão por conflitos que vitimem centenas de milhares de pessoas. Cada cidadão de uma nação populosa está, pode-se dizer que por inerência, menos exposto, enquanto indivíduo, à violência dos conflitos. A segurança individual aumenta quando a população cresce vertiginosamente.

Para provar o que avançam, Falk e Hildebolt comparam as mortes de guerra anuais de 24 grupos humanos sem estrutura de Estado e de 19 e 22 países que participaram, respectivamente, na Primeira e na Segunda guerras mundiais. Mas tiveram em conta, desta vez, o tamanho efectivo de cada uma destas comunidades humanas.

O segundo estudo que visa contradizer a teoria de Pinker foi publicado em Dezembro na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS). Nele, o antropólogo Rahul Oka, da Universidade de Notre Dame), e os seus colegas, também se perguntaram se haveria uma explicação matemática simples para a diminuição da proporção de pessoas que morrem em batalhas hoje em dia em comparação ao passado. Para isso, analisaram dados históricos provenientes de mais de 400 batalhas, algumas das quais remontam a mais de 2.500 anos.

Estes autores também observam existe um efeito de escala do tamanho da população sobre as baixas de guerra. “A probabilidade de uma pessoa ao acaso vir a estar envolvida num conflito ou a ser vítima mortal de um conflito diminui à medida que o tamanho e da população e a complexidade aumentam”, escrevem. E concluem igualmente que os seus resultados sugerem que as tendências históricas invocadas por Pinker podem ser mais bem explicadas pelo facto que, à medida que as populações crescem exponencialmente, as baixas de guerra per capita diminuem, uma lei que “parece ser válida para todas as sociedades, presentes ou passadas, seja qual for (…) o tipo e a natureza das instituições que as caracterizam”.

Pinker não concorda. Numa notícia publicada na revista Science, quando lhe foi pedido para comentar o estudo publicado na PNAS, ele respondeu que esses resultados não são mais do que “um truque estatístico”. Oka, pelo seu lado, retorquiu dizendo que a sua equipa estava simplesmente a tentar colocar a violência histórica e a moderna no contexto adequado – e que somos “tão pacíficos como sempre”. Ou tão violentos.


 

ana-gerschenfeld-01

Ana Gerschenfeld works as a Science Writer at the Science Communication Office at the Champalimaud Neuroscience Programme

 


 

Edited by: Catarina Ramos(Science Communication office). Photo credit: Dr. Meierhofer(Creative Commons CC BY-SA 3.0)

 


Loading Likes...