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Num universo com vidas paralelas, poderíamos ter encontrado Christian Machens escondido por trás de uma pilha de livros, imerso no argumento do seu mais recente romance. Ou debruçado sobre um piano, compulsivamente à procura das últimas notas da sua nova sinfonia. Mas aos 18 anos, Christian decidiu seguir a “opção segura”, nas suas próprias palavras, e estudar física.
Hoje, Christian Machens é Investigador Principal no Centro Champalimaud, à procura da chave para quebrar o código do funcionamento do cérebro… sentado atrás de um computador. Juntamente com a sua equipa, Christian tem analisado populações de centenas, milhares, dezenas de milhares de neurónios, tentando perceber a sua organização e função, e de que forma a atividade conjunta destes grandes grupos de células contribui para o comportamento.
Era uma tarde soalheira de Outubro. Christian estava contemplativo à nossa espera no seu escritório luminoso, rodeado de livros de neurociência e matemática. Na porta do seu escritório, um sinal revelador, com as seguintes palavras: “Neurociência Teórica”.
O que é ser um neurocientista teórico? E como é o teu dia-a-dia?
Humm… Basicamente, passamos os dias a olhar para dados no computador e a pensar intensamente sobre eles, com o objectivo de tentar formular uma descrição, um modelo, para esses mesmos dados.
Existe uma história no campo da física de que gosto particularmente, e que acho ser uma boa representação daquilo que fazemos. Tycho Brahe foi um astrofísico dinamarquês, que passou uns 20 ou 30 anos da sua vida a registar as posições das estrelas, planetas, lua, e sol, a cada dia possível, e anotando-as num caderno. Depois de todos aqueles anos, Brahe acumulou uma quantidade enorme de dados acerca das posições dos objetos no céu, mas era muito difícil perceber o que significavam. Já numa fase mais avançada da sua carreira, Brahe conheceu Johannes Kepler, um físico alemão, que começou a trabalhar como seu assistente. Kepler queria encontrar uma explicação para a ordem dos planetas e os seus movimentos no céu, e estava convencido que o conseguiria fazer através de cálculo matemático e pensamento sistemático. E foi o que aconteceu – após muitos anos de trabalho árduo, debruçado sobre os dados de Brahe, Kepler conseguiu formular um modelo simples de como os planetas giram em torno do sol seguindo uma órbita elíptica. Conseguem imaginar a quantidade louca de trabalho que deverá ter sido percorrer a quantidade imensa de dados registados por Brahe ao longo de todos aqueles anos?
Portanto, voltando à questão inicial do que é ser um neurocientista teórico… Eu acho que a história de Kepler, e os seus esforços em tentar encontrar a descrição matemática mais simples para as observações de Brahe, através de cálculo e testando uma ideia após a outra, são uma boa metáfora para aquilo que fazemos no nosso quotidiano. Excepto que agora temos computadores. Felizmente.
Podes dar-nos um exemplo do teu trabalho?
Imagina que tinhas registado a atividade de 10.000 neurónios simultaneamente, e que depois querias perceber o que este conjunto de células está a fazer: a que estímulos sensoriais estes neurónios estão a responder e como é que a sua atividade conjunta contribui para o comportamento.
O primeiro problema com que te deparas é que nem todos os neurónios deste conjunto fazem o mesmo. Para além disso, algumas destas células individuais respondem a muitas coisas diferentes. Por exemplo, imagina que um animal tem de selecionar um de dois objetos para obter uma dada recompensa. Existirão neurónios em estruturas específicas do cérebro que irão responder tanto ao objeto apresentado ao animal, como à sua decisão, bem como à recompensa, demonstrando o que tem sido chamado de ‘seletividade mista’ (mixed selectivity). Por isso, dada esta complexidade, como é que podemos investigar o que esta população de neurónios está a fazer? Uma das abordagens poderia ser olhar para cada neurónio individualmente, um a um, mas isso levaria uma eternidade.
Como no caso das observações de Tycho Brahe…
Exato. Por isso é que isto é um grande desafio. Primeiro, temos que conseguir organizar os dados de uma forma que nos permita observar o que se passa. Utilizando o exemplo acima, precisamos de um método para fazer o chamado demixing da atividade neural, isto é, para a separar nos seus componentes individuais, de forma a que depois a consigamos relacionar com cada passo da tarefa de comportamento, como o objeto apresentado ao animal, a sua decisão, ou a recompensa. E segundo, precisamos de formular uma descrição matemática que nos permita perceber o que é que esta população de neurónios está a fazer e como é que irá contribuir para o comportamento.
Tal como Johannes Kepler fez para os dados dos movimentos dos planetas…
Sim. Para além disso, ter uma descrição matemática dos dados permite-nos fazer previsões, o que é algo extremamente importante. Por exemplo, da próxima vez que fizeres uma experiência e registares a atividade de um conjunto de neurónios diferente, poderás prever as respostas destes novos neurónios com base no modelo desenvolvido anteriormente. E é este exatamente um dos objetivos do nosso trabalho – ser capaz de prever, numa experiência nova, o que vamos observar. Muito provavelmente, não seremos capazes de prever cada detalhe, uma vez que existe individualidade. Mas apesar disso, existem padrões no cérebro que são comuns entre diferentes indivíduos que desempenham a mesma tarefa de comportamento – e é isto que queremos conseguir prever.
Porque é que decidiste estudar estas questões?
Acho que o fator coincidência acabou por ser importante. Na realidade, eu estudei física na faculdade, não neurociências. Por isso, como é que um físico acaba em neurociências? Após acabar a faculdade, queria trabalhar em física teórica, mais especificamente em física de partículas elementares. Existe imenso trabalho que se pode fazer nesta área, mas apercebi-me que nada poderia ser testado numa escala temporal curta. O que quero dizer com isto? Imagina que estás a trabalhar em física de partículas elementares e que gostarias de testar uma nova ideia ou hipótese. Para tal, terias de fazer essa experiência no CERN, o que custaria milhares de milhões de dólares. E por isso, a probabilidade de conseguires testar a tua teoria seria extremamente baixa, e eu queria conseguir estudar algo mais próximo da realidade.
Nessa altura, eu estava a viver em Berlim, e um grupo de cientistas, incluindo alguns físicos, tinham começado um instituto novo para estudar biologia teórica. O programa de investigação deles parecia muito interessante, com questões da biologia que poderiam ser testadas numa escala de meses, ao contrário das dezenas de anos necessárias na área da física de partículas. Por isso, decidi juntar-me a este instituto, que estava cheio de investigadores novos e dinâmicos, e este foi o meu ponto de entrada nas neurociências, onde comecei por estudar o sistema auditivo de gafanhotos. A partir daí, dediquei-me ao mundo da neurociência, e basicamente acabei por ir seguindo tudo o que ía aparecendo e que eu considerava interessante.
Olhando em retrospetiva para a tua carreira, que aspetos da tua personalidade consideras terem sido importantes no teu percurso enquanto cientista?
Acho que precisas de ser esperto até certa medida, mas não precisas de ser o mais esperto. Por exemplo, na faculdade fazia parte dos 10 a 20% melhores alunos que estudavam física, mas não era a estrela.
Na minha opinião, a característica mais importante é: ser motivado, querer perceber como é que a natureza funciona e como chegar ao cerne das coisas. E sentires-te, de certa forma, insatisfeito acerca daquilo que já se sabe. Eu acho que isto vem de uma sede por conhecimento. Isto poderá soar trivial, mas o que quero dizer é que esta sede por conhecimento tem que estar acima de quase tudo, seja de querer ter sempre razão ou de querer parecer esperto. E durante as fases mais duras, que acontecerão, esta motivação é fundamental para te manteres em pé enquanto cientista.
A escolha desta carreira também acarreta algumas implicações práticas importantes. O teu salário, por exemplo, será consideravelmente inferior ao dos teus colegas que tiveram uma educação semelhante, mas que optaram por uma carreira fora da investigação. Por outro lado, tens de estar disponível para viver em diferentes sítios. No meu caso, estudei em dois locais na Alemanha, e vivi nos EUA em dois períodos diferentes da minha vida: primeiro, um ano enquanto estudante, e mais tarde, quatro anos enquanto postdoc. Depois disso, voltei à Alemanha, como Investigador Principal, depois Paris, e agora Lisboa. Portanto, vivi em muitos lados diferentes, provavelmente mais do que a média dos cientistas, mas também beneficiei muito com isso. Estar em muitos laboratórios diferentes, com desafios e pessoas novas, é uma grande vantagem.
Enquanto cientista, que mensagem gostarias de transmitir a quem te está a ler?
Sejam céticos. Especialmente acerca das vossas próprias crenças, e das crenças das pessoas que vos rodeiam. Questionem a toda a hora.
Achas que vais querer ser cientista para sempre?
Por agora, diria que sim. Mas isso é porque não podemos ter vidas paralelas. À medida que envelhecemos, vai-se tornando mais difícil começar completamente de novo. Acumulas muito conhecimento. E acho que não conseguiríamos competir com as pessoas de 20 anos que estão a começar agora. Mas, se calhar, estou apenas a ser antiquado.
Maria Inês Vicente trabalha no Gabinete de Comunicação de Ciência, no Champalimaud Research
Editado por: Catarina Ramos, Ana Gerschenfeld
Crédito fotográfico: Catarina Ramos
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