A dor: um sexto sentido indispensável?

Credit: scoundrelfighter
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A expressão “sexto sentido” é usada regularmente para aludir a  uma espécie de intuição especial que nos permite saber e percepcionar coisas sem utilizar os cinco sentidos tradicionais. É também o título do filme de 1999, por M. Night Shyamalan, com Haley Joel Osment e Bruce Willis. Mas será a dor um verdadeiro sexto sentido? E seriam as nossas vidas melhores sem ela, ou será que estaríamos condenados?

Os cinco sentidos referem-se aos cinco tradicionais métodos de percepção ou sensação: paladar, visão, tacto, olfacto e audição. O sistema nervoso tem sistemas e órgãos sensoriais dedicados a cada sentido. No caso da visão, por exemplo, o órgão sensorial são os olhos, e o sistema sensorial o sistema visual. No entanto, aquilo que constitui um sentido ainda é uma questão debatida na comunidade científica, especialmente no que toca a definir fronteiras entre estímulos sensoriais semelhantes, mas distintos.

Pensemos no tacto, por exemplo. Este tipo de informação é inicialmente transmitido ao nosso cérebro por neurónios sensoriais específicos, e é depois percepcionado em áreas específicas do cérebro. Quando alguém nos toca no braço, um ou mais tipos de neurónios sensoriais específicos (geralmente, mecanorreceptores) são activados e convertem esse “toque” num sinal eléctrico, que é transmitido ao córtex somatossensorial, onde é processado e interpretado.

Ao contrário daquilo em que a maior parte das pessoas acredita, a “dor” não resulta de uma activação mais intensa de mecanorreceptores. Na verdade, há neurónios sensoriais específicos, chamados nociceptores, que só são activados quando um estímulo atinge uma certa intensidade. Assim, por exemplo, o toque leve de uma agulha irá activar mecanorreceptores e será percepcionado como “toque”, mas se a pressão da agulha na pele se tornar mais intensa passará a activar nociceptores, cujas terminações nervosas estão em geral localizadas nas camadas profundas da pele, passando o toque a ser interpretado/sentido como doloroso.

Existem diversos tipos de nociceptores, que convertem e transmitem informação ao cérebro sobre diversos tipos de “dor”, após activação por parte de diversos tipos de estímulos nocivos (“dolorosos”). Esta informação pode seguir por vias diferentes até ao cérebro, e muitos estímulos nocivos são distintos daqueles que transportam informação sobre o tacto. Uma vez no cérebro, esta informação é processada e interpretada em áreas específicas. Algumas delas são as mesmas que interpretam e processam informação sobre tacto, mas outras não.

Para além disso, a dor, ao contrário do tacto, não é uma experiência unicamente sensorial. Na verdade, a Associação Internacional para o Estudo da Dor (International Association for the Study of Pain, IASP) define a dor como sendo “uma experiência desagradável sensorial e emocional associada com a real ou potencial lesão de tecidos, ou descrita em termos de tal lesão”. Na comunidade científica, é normalmente feita uma distinção entre o aspecto puramente sensorial da dor, designado nocicepção, e a totalidade da experiência da dor, que inclui a sua componente emocional. Neste artigo, o termo “dor” será utilizado em ambos os casos, por uma questão de simplicidade.

Tal como os outros sentidos, a dor é uma experiência altamente subjectiva, que pode ser modificada por dezenas de factores, incluindo, por exemplo, a expectativa e a atenção. É por este motivo que crianças (e adultos) são geralmente distraídas por enfermeiras quando precisam de tirar sangue: se não estivermos a prestar atenção e a esperar sentir dor, é menos provável que sintamos dor, apesar de o aspecto simplesmente sensorial da mesma ser basicamente o mesmo (os mesmos nociceptores são activados com a mesma intensidade, estejamos a olhar para a agulha ou não).

Resumindo, é razoável considerar a dor um (sexto) sentido, completamente diferente do tacto, uma vez que os neurónios, as vias até ao cérebro e as áreas cerebrais responsáveis pela percepção destas sensações são diferentes.

Se olharmos para a descrição de dor, e se pensarmos na nossa própria experiência com ela, há uma palavra que sobressai: desagradável. A dor é, no mínimo, desagradável, mas, com frequência, incapacitante. Se pensarmos nos outros sentidos, todos eles têm uma óbvia razão de ser e, juntos, contribuem para tornar a nossa vida neste mundo (como animais e também seres humanos) mais fácil. A dor, pelo contrário, pode ser penosa… Por vezes, pode mesmo impedir-nos de realizar uma série de actividades necessárias no nosso dia-a-dia. As pessoas que sofrem de vários tipos de dor crónica têm muitas vezes dificuldade em viver vidas normais, devido a quão incapacitante esta pode ser. Nesse caso, será que estaríamos melhor sem dor?

Na verdade, a dor tem uma função de sobrevivência crítica, servindo de mecanismo de defesa a vários níveis. Em primeiro lugar, a dor desempenha uma clara função de protecção imediata: impele-nos a evitar ou a fugir de situações perigosas ou potencialmente lesivas. Por exemplo, se pusermos uma mão num fogão quente, uma situação potencialmente lesiva, acabamos por a remover imediatamente, o que minimiza a lesão resultante.

Outra função da dor é a protecção da zona danificada enquanto esta sara. Neste caso, a queimadura faz com que seja doloroso utilizar a nossa mão e, portanto, acabamos por evitar fazê-lo, o que acelera o processo de cicatrização. A última função da dor é em tudo semelhante à de uma professora: a dor ensina-nos a evitar situações potencialmente danosas no futuro. Neste exemplo, é possível que sejamos mais cuidadosos da próxima vez que estivermos ao pé de um fogão, e que confirmemos se será seguro tocar-lhe, ou que evitemos tocar-lhe de todo.

O que aconteceria se fóssemos incapazes de sentir dor?

Será possível viver sem dor? A resposta à primeira pergunta é sim. E não. Existem pessoas que nasceram sem a capacidade de sentir dor. Conseguem sentir tacto, mas não dor (o que aliás também reforça a necessidade de distinguir a dor do toque enquanto sentidos). A isto chama-se Insensibilidade Congénita à Dor (ICD), uma doença geralmente causada por uma mutação (alteração na sequência de ADN) num gene que codifica um canal iónico específico (uma estrutura localizada à superfície das células que permite a troca de informação entre o interior e o exterior das células).

Este canal está presente nos nociceptores e é crítico para a transmissão do sinal eléctrico até ao cérebro. Se não funcionar correctamente, o sinal nunca chegará ao cérebro e nunca será detectado – e, portanto, a dor não será sentida. As pessoas com ICD são frequentemente saudáveis e deveriam ser capazes de viver uma vida longa e normal. Mas, geralmente, não isso não acontece. Na realidade, a maior parte delas morre durante a infância, uma vez que não são raras as vezes em que não se apercebem de que têm lesões diversas, como queimaduras ou ossos partidos, e também porque têm alguma dificuldade em aprender que comportamentos evitar. Para além disso, podem não responder a problemas de saúde, sendo incapazes de detectar doenças graves, como infecções, suficientemente cedo.

A Insensibilidade Congénita à Dor é uma doença extremamente rara, em parte devido à especificidade da sua origem genética, mas sobretudo devido à sua inviabilidade de um ponto de vista evolutivo, uma vez que tão poucos indivíduos sobrevivem até à vida adulta. Houve vários incidentes de jovens adultos do sexo masculino que acabaram por se matar ao se colocarem em situações ridiculamente perigosas, porque não eram ensinados e, consequentemente, limitados pela dor.

Há também o caso de um rapaz paquistanês, que chegou ao conhecimento dos cientistas devido à sua reputação na sua comunidade enquanto artista de rua – nomeadamente, por ser capaz de andar sobre carvão a escaldar e de espetar facas nos braços sem mostrar qualquer sinal de dor. Acabou por morrer ainda adolescente, depois de saltar do telhado de uma casa. O relato pessoal da vida sem dor foi publicado num artigo da BBC News (aviso: o artigo, escrito em inglês, pode ferir a susceptibilidade dos leitores mais sensíveis).

Apesar de a Insensibilidade Congénita à Dor ter uma origem relativamente específica e delineada, este não é o caso para a maior parte das outras doenças. Na verdade, o nosso conhecimento relativamente à dor, tanto ao nível molecular como de circuitos neurais, é ainda bastante limitado.Actualmente, cientistas de todo o mundo investigam este fenómeno, com o intuito de aumentar os nossos conhecimentos quanto a este misterioso sexto sentido. Da mesma forma que  foi preciso compreender os mecanismos da visão ou da audição para desenvolver óculos e aparelhos auditivos, a compreensão dos mecanismos envolvidos na geração e no processamento da dor é essencial ao desenvolvimento de terapias capazes de melhorar a qualidade de vida de milhões de pessoas por todo o mundo.

Uma coisa parece, no entanto, certa – não  deve ser possível viver sem este nosso sexto sentido.

Nota: A autora não escreve segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990.

BIBLIOGRAFIA:
1. Hellier, J.L. ed., 2016. The Five Senses and Beyond: The Encyclopedia of Perception: The Encyclopedia of Perception. ABC-CLIO.
2. Kandel, E.R., Schwartz, J.H. and Jessell, T.M. eds., 2000. Principles of neural science (Vol. 4, pp. 1227-1246). New York: McGraw-Hill.
3. McMahon, S.B., Koltzenburg, M., Tracey, I. and Turk, D.C., 2013. Wall & Melzack’s Textbook of Pain, Expert Consult-Online and Print, 6: Wall & Melzack’s Textbook of Pain. Elsevier Health Sciences.
4. http://www.iasp-pain.org/Education/Content.aspx?ItemNumber=1698#Pain
5.http://www.bbc.com/future/story/20170426-the-people-who-never-feel-any-pain
6. https://www.bbc.co.uk/news/magazine-18713585

 


 

Elisa Clemente is a PhD student at University College London

 


 

Edited by: Ana Gerschenfeld(Science Communication office). Photo credit: scoundrelfighter (Creative Commons CC BY-NC-ND 2.0)

 


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